No auge da primeira onda da Covid-19 no Brasil, médicos da operadora de saúde Hapvida que foram coagidos a prescrever hidroxicloroquina para pacientes com sintomas gripais receberam um longo material em defesa da droga atribuídos à médica Nise Yamaguchi. A pressão para que funcionários da rede, que atua principalmente nas regiões Norte e Nordeste, receitassem a hidroxicloroquina foi revelada na última sexta-feira pelo GLOBO.
A oncologista, que depôs na CPI da Covid em junho, atuou como consultora informal do Ministério da Saúde e desponta como uma das principais defensoras do remédio, comprovadamente ineficaz contra a doença.
A apresentação intitulada “Evidências científicas sobre o uso precoce da cloroquina no combate à Covid-19” consta de trocas de mensagens entregues à equipe da colunista Malu Gaspar por médicos que ainda trabalham na Hapvida. Ela foi distribuída em julho de 2020 pelo diretor de emergências da Hapvida, Alexandre Wolkoff, em um grupo de WhatsApp voltado para orientações médicas.
O caso de coação denunciado pelos médicos da Hapvida tem semelhanças com o da Prevent Senior, com a diferença de que, neste, profissionais revelaram se tratar de um alinhamento ideológico proposital da operadora com o governo Bolsonaro: o objetivo era dar à população esperança de que com tratamento precoce seria possível ignorar medidas de restrição de circulação para evitar a propagação do vírus e não prejudicar a economia.
O documento, que tem 33 slides, ressalta em uma das telas que “Prevent Senior, Hapvida e planos do sistema Unimed, dentre outros planos de saúde”, defendiam o uso do medicamento no tratamento da Covid.
A apresentação distribuída aos médicos com o nome de Nise reserva um slide para cada rede, destacando argumentos para a defesa do chamado tratamento precoce. No caso da Prevent Senior, o slide diz que 5.400 pacientes receberam a hidroxicloroquina e que, destes, nenhum morreu. Apenas 128 teriam sido internados depois de receber o remédio. Hoje se sabe que a rede paulista ocultou óbitos por Covid-19, fraudou prontuários e distribuiu o remédio sem o consentimento de diversos pacientes. Desde maio, a Hapvida reviu e abandonou a orientação de uso da cloroquina, mas naquele momento o plano não só recomendava seu uso como fornecia treinamentos para os médicos aplicarem a cloroquina nos tratamentos contra a Covid e impunha metas de distribuição aos pacientes.https://297da09b18f855e09ad635340799cb69.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
A reportagem procurou Nise Yamaguchi e a questionou sobre o material. Até o fechamento desta reportagem, a médica não confirmou nem negou a autoria da apresentação. Também não respondeu se prestou consultoria a uma das redes privadas a respeito da hidroxicloroquina. À Hapvida, foi perguntado se Nise Yamaguchi participou de algum curso ou treinamento da empresa. A assessoria de imprensa afirmou que não.
O arquivo que contém os slides não é datado, mas foi gerado em 2 de julho de 2020, quatro dias antes de ser compartilhado no grupo da Hapvida. A data coincide com as investidas do governo federal em prol da cloroquina. Nessa época, o ministro da Saúde era o general Eduardo Pazuello. (DOL)