A importação de revólveres e pistolas bateu recorde nos oito primeiros meses deste ano. De janeiro a agosto, as compras somaram US$ 15 milhões, mais que o dobro do registrado no mesmo período do ano passado.
A alta foi identificada também na quantidade de armas que entraram no país –foram 37,3 mil revólveres e pistolas, sendo 25,6 mil deles somente no mês em agosto. Nos primeiros oito meses do ano passado, para comparação, foram importadas 17,5 mil armas dessas categorias.
Os resultados, obtidos pela Folha de S.Paulo nos registros do Ministério da Economia, são muito superiores à série histórica. Em 2005, por exemplo, foram 26 unidades, com valor total de US$ 7.200.
O impulso coincide com uma mudança. Até o ano passado, a importação de armas era proibida quando existissem produtos similares fabricados no Brasil.
Essa restrição foi derrubada em decreto do presidente Jair Bolsonaro, publicado em maio deste ano, que também flexibiliza normas para compra de armas no país.
Os atos eram uma promessa de campanha do hoje presidente: ampliar a posse (direito de manter em casa ou no trabalho) e porte (direito mais amplo) de armas de fogo.
A medida, contudo, é contestada por especialistas em segurança pública, como o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.
“Antes mesmo dos decretos já havia um aumento na comercialização de armas no Brasil. Com os atos do presidente, a tendência de crescimento deve continuar. Quanto mais armas em circulação, pior a questão dos homicídios, a violência letal”, disse.
O aquecimento do mercado de armas –intenção manifesta de Bolsonaro, que afirma que a flexibilização do porte e da posse vão permitir que o cidadão se defenda melhor– se reflete não só na quantidade já importada mas também no potencial de entrada desses produtos no Brasil.
A procura por armas expandiu o número de pedidos para importações, que precisam de aval do Exército.
Dados enviados à reportagem mostram que, de janeiro a agosto, foi autorizada a compra de 152,5 mil armas estrangeiras, contra 86,4 mil no mesmo período do ano passado.
Isso indica que a importação de armas deve manter a tendência de alta, já que a maioria ainda vai desembarcar no Brasil.
O aval do Exército é dado a qualquer arma de fogo –e não apenas revólver e pistola– e pode ser para a compra de uma única unidade ou de um lote.
Essa expansão, entretanto, foi puxada por pedidos feitos por pessoas físicas, afirma o Exército. Foram 5.000 autorizações –300 a mais do que no mesmo período de 2018, um avanço de 6,4%.
Na mesma comparação, houve recuo nas autorizações para pessoas jurídicas e órgãos de segurança pública. Esse número caiu 12%, de 478 para 421, nos primeiros oito meses de 2019.
“É preocupante quando se começa a fomentar o mercado de armas com baixíssimas condições de controle. Ainda existem normas do Exército a serem cumpridas, mas ficou mais simples para que pessoas físicas consigam importar”, afirmou o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.
Além de retirar a restrição a importações, os decretos de Bolsonaro flexibilizam o acesso a armas de fogo de calibre anteriormente restrito. Muitas dessas armas, segundo Langeani, não têm fabricação nacional e resta, então, buscar pelas unidades lá fora.
A limitação para que se importasse apenas armas que não eram produzidas no Brasil foi criada para proteger a indústria nacional do setor, cuja principal empresa é a Taurus.
O objetivo do governo foi exatamente o oposto, abrir esse mercado para a concorrência internacional e, assim, permitir a compra de armas estrangeiras que podem ser mais baratas e de melhor qualidade que as brasileiras.
O Instituto Sou da Paz defende a quebra do monopólio para as aquisições feitas por órgãos de segurança pública, mas é contra a liberação para pessoas físicas e empresas que comercializam armas de fogo.
“Essa desregulamentação total do controle de armas pode ter efeito no mercado ilegal também, que é abastecido parcialmente por desvios do mercado formal”, afirma Langeani.
Sob Bolsonaro, o comércio de armas dentro do Brasil também cresceu.
No primeiro semestre de 2019, a Taurus vendeu cerca de 50 mil armas de fogo em território nacional. O valor é quase 13% superior às comercializações de armamentos do mesmo período do ano passado, quando cerca de 44 mil armas foram vendidas.
A empresa é especializada na fabricação de revólveres, pistolas e armas longas, como rifles e espingardas.
As vendas no Brasil proporcionaram uma receita líquida de R$ 71,2 milhões na primeira metade do ano à Taurus, superando em 10% o registrado no mesmo período do ano anterior.
Outro indicador desse aquecimento do mercado interno vem da base de dados da Polícia Federal.
Os registros de armas compradas por civis para defesa pessoal estão em alta. No primeiro semestre, o cadastro já representa 65% do total de vendas do ano passado inteiro.
Foram 17,9 mil armas catalogadas até junho de 2019, contra 27,5 mil em todo ano de 2018. Já o total de registros feitos no país em 2018, incluindo de pessoas jurídicas como empresas de segurança, chegou a 196,8 mil, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública. A entidade ainda não compilou os dados deste ano.
“Quando você fomenta e facilita o acesso, há estímulo a esse mercado. A grande pergunta é como o Estado vai fiscalizar isso”, diz o presidente do Fórum.
Os decretos que flexibilizam o porte e posse de armas –os mesmos que retiram a barreira a importações– são questionados no STF (Supremo Tribunal Federal), que ainda não se posicionou sobre o assunto.
Uma das ações é movida pelo partido Rede Sustentabilidade. O líder da sigla no Senado, Randolfe Rodrigues (AP), teme que o aumento de armas no país gere aumento da violência.
“A medida [de mudanças nas regras em relação a armas de fogo] não pode ser por meio de decreto do presidente da República. Isso teria que ser debatido no Congresso. A gente não resolve os problemas do país armando todo mundo”, declarou. Na ação, o partido argumenta que afrouxar as regras de acesso a armas coloca em risco a segurança de toda a sociedade.
No último dia do mandato, a ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu que o STF declare inconstitucionais os seis decretos de Bolsonaro que alteram as regras para aquisição de armas.
O parecer foi enviado por ela na terça-feira (17), contrariando os interesses do Palácio do Planalto. Dodge concorda com o partido Rede e sustenta que o tema deveria ter sido discutido pelo Congresso, e não definido em decreto presidencial.
Ainda não há previsão para a decisão do Supremo. (Dol)